quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A NOITE

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior 
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro. 
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias 
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros. 
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las 
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, 
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia 
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama 
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde, 
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das 
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer 
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que 
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz 
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos 
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo 
a treva nasalada.



Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de 
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002
SEM OUTRO INTUITO


Atirávamos pedras 
à água para o silêncio vir à tona. 
O mundo, que os sentidos tonificam, 
surgia-nos então todo enterrado 
na nossa própria carne, envolto 
por vezes em ferozes transparências 
que as pedras acirravam 
sem outro intuito além do de extraírem 
às águas o silêncio que as unia. 



Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de 
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002
O ABISMO
 
 
Com a sua pele de poço, pele comprometida com o 
medo que no fundo fede e a que, digamos, toda ela adere 
de uma forma resoluta, dir-se-ia que se engancha, se pen-
dura, o branco da memória a alastrar pelo corpo, um bran-
co tão branco como o das noites em branco e sobre o qual 
a idade, exorbitada, hiante, se insinua, pensos, ligaduras, 
impregnados de memória, uma memória onde fulgura a 
lava dos sentidos que entram em actividade e lhe dis-
putam os dias idos, assim ergue a balança, onde sustém 
o abismo.



Luís Miguel Nava
Vulcão II
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de 
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002