sábado, 10 de setembro de 2011
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
A NOITE
A noite veio de dentro, começou a surgir do interior
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.
Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002
SEM OUTRO INTUITO
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002 |
O ABISMO
Com a sua pele de poço, pele comprometida com o
medo que no fundo fede e a que, digamos, toda ela adere
de uma forma resoluta, dir-se-ia que se engancha, se pen-
dura, o branco da memória a alastrar pelo corpo, um bran-
co tão branco como o das noites em branco e sobre o qual
a idade, exorbitada, hiante, se insinua, pensos, ligaduras,
impregnados de memória, uma memória onde fulgura a
lava dos sentidos que entram em actividade e lhe dis-
putam os dias idos, assim ergue a balança, onde sustém
o abismo.
Luís Miguel Nava
Vulcão II
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002
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