quarta-feira, 16 de novembro de 2011

AL BERTO

AL BERTO - O MEDO

E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
Dizem que a paixão o conheceu

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice


conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo


dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos

AL BERTO

Al Berto, pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu em Coimbra a 11 de Janeiro de 1948. Faleceu em 1997. Estudou Artes em Lisboa na Escola António Arroio e em Bruxelas termina o curso de pintura na École Nationale Supérieure d'Árchitecture et des Arts Visuels. Regressa a Portugal em 1974 e dedica-se exclusivamente à escrita. Publica o livro À Procura do Vento num Jardim d'Agosto.  Em 1987 a Assírio & Alvim publica O Medo, antologia que reúne o seu trabalho de 1974 a 1986.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A NOITE

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior 
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro. 
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias 
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros. 
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las 
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, 
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia 
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama 
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde, 
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das 
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer 
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que 
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz 
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos 
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo 
a treva nasalada.



Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de 
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002
SEM OUTRO INTUITO


Atirávamos pedras 
à água para o silêncio vir à tona. 
O mundo, que os sentidos tonificam, 
surgia-nos então todo enterrado 
na nossa própria carne, envolto 
por vezes em ferozes transparências 
que as pedras acirravam 
sem outro intuito além do de extraírem 
às águas o silêncio que as unia. 



Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de 
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002
O ABISMO
 
 
Com a sua pele de poço, pele comprometida com o 
medo que no fundo fede e a que, digamos, toda ela adere 
de uma forma resoluta, dir-se-ia que se engancha, se pen-
dura, o branco da memória a alastrar pelo corpo, um bran-
co tão branco como o das noites em branco e sobre o qual 
a idade, exorbitada, hiante, se insinua, pensos, ligaduras, 
impregnados de memória, uma memória onde fulgura a 
lava dos sentidos que entram em actividade e lhe dis-
putam os dias idos, assim ergue a balança, onde sustém 
o abismo.



Luís Miguel Nava
Vulcão II
Poesia Completa
1979-1994
Prefácio de 
Fernando Pinto do Amaral
Organização e Posfácio de
Gastão Cruz
Publicações D. Quixote
2002

terça-feira, 30 de agosto de 2011

LUÍS MIGUEL NAVA e ISABEL DE SÁ, numa das visitas frequentes do poeta ao Porto. Anos 80

Isabel de Sá nasceu em Esmoriz a 8 de Setembro de 1951. Licenciatura em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Poeta e artista plástica.

REPETIR O POEMA, de ISABEL DE SÁ reune 14 livros da autora. Edições Quasi, 2005.

4 POEMAS DE ISABEL DE SÁ

Eu ela e a escrita existimos desde o princípio. A escrita forma-se em mim, passa por ela e volta à minha pele  num jogo sensual e íntimo. É um ser maleável aos gestos que executamos, vive e morre com os nossos impulsos. Quando se ausenta deixa sinais. Faz-nos confidências da sua vida errante, elabora sentimentos que não esperávamos que tivesse quando junta ao nosso, o seu instinto criativo. Assim, utilizo agora palavras que nunca pensei vir a escrever. Aceito-as porque as sei da espécie da personagem que habita connosco, conivente com os erros que cometemos.
Quando adolescente, passava o tempo a ler o dicionário, apercebendo-me da corrosão de algumas palavras, do seu poder destrutivo. Noutras havia sombra e um peso monstruoso. E as que ao tempo foram luminosas, irradiavam um brilho que se colou aos meus dedos. Eu gastava os dias a limpar-me dessa luz até não haver em mim resíduos de leitura. Descobria o esquecimento, onde o poema veio a ser abismo, outra vida onde o sorriso da morte teve muita importância. Amei a imperfeição do ser humano. Revisitei a infância e aquilo que em nós é real. Não soube prescindir da beleza.
Ela vem do exterior, arrasta tumultos, ideias, um frágil ramo de árvore. A vida confusa, dividida. Aquilo que é interior e nasce involuntáriamente. Violetas deixadas em água, o desenho incompleto para sempre inútil. A bola de cristal ainda na memória.
Lembrar-te, é amar os corpos que partilhamos. O que me atrai em ti pertence à sabedoria do texto, à primeira palavra murmurada. O que me atrai no amor é a indeterminação, o impulso inicial. Os rostos que amei na tua ausência foram tocados por ti através da minha pele. Ninguém pode esclarecer a sua alma à margem deste pacto. O nosso amor desfaz o trio.
É na treva que sou obrigada a reconhecer o que escrevo. Sucumbo a uma grave abstracção de pensamento donde chego a sair tocada pela invocação da palavra.


Realidade


 Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolam-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.

Isabel de Sá, in “Erosão de Sentimentos

João Borges nasceu em Braga a 10 de Março de 1990. Reside em Lisboa onde estuda Arquitectura.

 

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

JL de 24 de Agosto de a 6 de Setembro de 2011

3 POEMAS DE JOÃO BORGES

Ainda estranho o corpo que visto
de manhã. Procuro outros
para sentir.

O silêncio arde, lento.

Estendo uma mão que toca
apenas em mim.

O tempo termina. Arrasta-me.
Vou-me evadindo para longe,
cinza inútil voando da fogueira.

O nome está no ruído
que desmorona noite dentro.
A chuva corrói a pele
em pleno deserto.

Dentro dos teus passos
há um segredo do tamanho
da luz.
Ao pressentir a escuridão
do vazio,
os braços inclinam-se
para ti.
Ao Vento Em Terramotos, edição cofre nocturno, lisboa, 2011
Com o corpo todo à espera
entro para a neblina.
Alameda vazia, silêncio.
Casas erguidas
para fazer um caminho.

Com o corpo todo à espera
chamo-te, sem saber o

 nome, sem luz, sem imagem.
Fantasmas prolongam
os passos, adiam a casa.

Com o corpo todo à espera
silencio a vontade
de me aproximar, viver.
Respiro a humidade
do nevoeiro, sempre à espera


domingo, 28 de agosto de 2011

JOÃO BORGES - AO VENTO EM TERRAMOTOS



Edição Cofre Nocturno, Lisboa, 2011, hors-texte e ilustração de Graça Martins, desenho da capa de João Borges

JOÃO BORGES - Pele, papel e poesia por António Carlos Cortez - JL de 24 de Agosto a 6 de Setembro de 2011

Um livro singelo, sóbrio, com um belo grafismo e desenhos extremamente sugestivos. As figuras um tanto-quanto andróginas, convidam-nos a uma leitura atenta que se reinicia na epígrafe, de Lídia Jorge, e que encima este belo objeto estético. Diz essa epígrafe: "Não é porque alguém chama que alguém responde" Justamente estas palavras ecoam nos poemas de João Borges que parecem ser motivados por uma procura, por uma audição de alguém que, na verdade, se sabe longe. São poemas que revelam - e tomara que a restante crítica desse por este livro e se pronunciasse, de forma justa e verdadeira - um poeta. Uma voz que deve chegar a mais leitores da nossa poesia actual.
O poema que funciona como prefácio coloca como tónica a construção de uma personalidade poética insaciável. Uma personalidade que faz da escrita o palco onde irá expor-se:"Estou sempre com sede e nunca me canso de beber". A primeira secção deste breve livro tem oito poemas, todos eles tensos, enigmáticos e com uma imagética forte e uma construção metafórica que, em alguns momentos, sugere a leitura de Luís Miguel Nava ("As pedras que acendem / entram e saem da minha pele, / deixam feridas. // A fogo rasgam as veias. // Atiro a escuridão para /a rua. Esmorece a paisagem, flui o desejo. / Posso avançar/sobre trevas" (p.13)). É de facto, uma poética da pele, do fogo, de um erotismo apaixonado mas que se vive às escuras, numa espécie de transe para o qual não há saída existencial concreta. Por isso o tom de segredo, de diário oculto que às ocultas tivesse sido escrito. Nessa escrita sobre a paixão, o poema surge como objeto de reconhecimento do próprio sujeito, procurando-se uma definição do rosto, do corpo e das memórias de um amor louco e onde se pode perceber a lição de Breton e Eluard, para além de certa atmosfera passional que nos remete para Botto e mesmo para um certo Biedma. Escreve João Borges versos que denotam (e conotam) a fúria da escrita que irrompe depois da paixão e na reminiscência do vivido: Quero o orvalho mais vivo. Toma / esta pedra que não vês ,/ mas que eu sinto. // Finalmente, atirei-te contra / a cama, louco. A vida / acontecia, o amor mostrava / o rosto. Néons incendiavam / as ruas e nós, um no outro, / até ao fim. Respirávamos / palavras, esperma, sangue. / (...)" (p.15).
João Borges selecciona um léxico impressivo (facas, fogo, pedras, precipício, sangue, inferno, delírio, deserto) e num dos poemas que funcionam como possível arte poética, "O nome está no ruído", misturam-se a tonalidade autobiográfica com um fingimento que não se exime a fazer o relato não do que aconteceu, mas do que se pressente, do que é tangencial à ficção, ao olhar delirante do sujeito:" O nome está no ruído / que desmorona noite dentro. / A chuva corrói a pele / em pleno deserto" (p.19). A tentativa de fixar, em moldes de realidade, o amor e o sexo, propicía uma segunda secção (com 18 poemas) em que se relata o início, o climax e o fim desse amor-paixão
Raras vezes um poeta tem a ousadia de se mostrar assim num primeiro livro. Romanticamente, mas sem ceder a um discurso lacrimejante, Borges não esquece que a poesia nasce e tende ao lirismo. Esta é uma palavra perigosa. Mas está na hora de deixar de lado preconceitos críticos e pretensiosos. Lírica é esta poesia: fortemente lírica, densa, intensa, escrita com consciência da verdade íntima do que se viveu e que, na linguagem se revive, desejando "escorregar pelas escarpas" depois do desencontro a que todo o amor - paixão está votado. Título deste primeiro livro? Programático: Ao Vento em Terramotos.

JL